Primeiro que tudo, tenho de vos explicar que a minha relação com o punk começou como a de Fernando Pessoa com a coca-cola: primeiro estranhou, depois entranhou…
A culpa foi do meu maninho, assim como a responsabilidade de eu gostar de jazz desde puto veio do meu pai. Sim, sou um tipo muito influenciável.
No que ao rock respeita, em adolescente eu gostava era do prog. O meu ídolo era o Ian Anderson dos Jethro Tull, banda que eu agora vejo a ser vilipendiada por toda a gente sem que consiga perceber porquê.
Enfim, também idolatrava o David Bowie, mas isso era secreto. Se não tinha complexos relativamente aos Tull, algo me dizia que gostar do Bowie não era socialmente bem-recebido nos meios em que me movia. Porque era demasiado «pop» ou porque o consideravam «paneleiro» e coisa e tal.
Pois foi neste contexto que o meu irmão Carlos me introduziu no punk, mostrando-me bandas como Damned, Discharge, Boomtown Rats e por aí fora.
Sobretudo, mostrando-me o seu próprio grupo com o nosso primo Fred, que primeiro se chamou Rebenta-Calhaus e depois Napalm Climax. Vai um vídeo histórico da década de 1980?
A descoberta convenceu-me: encontrei no punk o mesmo que já tinha encontrado no free jazz: visceralidade, explosão de energia. O rock pró-sinfónico dos Emerson, Lake & Palmer já não tinha nada disso.
É claro que acabei por me sentir especialmente atraído pelas cenas punk mais elaboradas e exóticas, tipo Stranglers, Richard Hell & The Voidoids, Siouxsie and The Banshees, Plasmatics, Clash ou Modern Lovers.
Outra coisa não seria de esperar de quem tinha uma dieta feita de Pink Floyd, Genesis, Frank Zappa & The Mothers of Invention, Soft Machine, Henry Cow, Can ou Faust.
Só que, entretanto, descobri X-Ray Spex, com a incrível Poly Styrene. Não resisto a incluir imagens dela.
E Dead Kennedys, com o igualmente extraordinário Jello Biafra. E Black Flags, e Ramones.
Pumba: havia um punk primário que me arrebatava tanto quanto o «Ascension» de John Coltrane me tinha tirado o tapete de debaixo dos pés.
Estava conquistado para o punk. Aliás, foi por causa do dito (à procura de reminiscências do dito) que mergulhei depois em The Fall, Pere Ubu e This Heat. Mais tarde no stoner rock: derreti ao ouvir pela primeira vez os Dead Meadow…
E foi devido ao punk que assumi, já cota, o quanto me agradavam Black Sabbath e The Stooges.
Essa devoção teve consequências: aos 55 anos de idade, publiquei um livro sobre o punk queer e seus derivados, «Anarco-Queer? Queercore!». Havia outras bandas do género em que o arroto a cheirar a cerveja não era machão e pus-me obsessivamente a pesquisá-las, ouvindo tudo o que pude encontrar por aí.
Mas quem me conquistou mais para a causa foram mesmo os Rebenta-Calhaus / Napalm Climax. Assisti em primeira mão ao trabalho da banda, em ensaios numa arrecadação de Linda-a-Velha e em concertos nas mais suburbanas sociedades recreativas.
Ainda assim, e ao contrário do Carlos e do Fred, nessa altura nunca vesti blusões de cabedal ou calcei Doc Martens.
Só recentemente as minhas então adquiridas costelas punk se deram a ver no meu corpo, por meio de tatuagens. Uma delas é o símbolo da anarquia. Outra o símbolo do caos. Nunca é tarde, gente, nunca é tarde…
Assim como não é tarde que os Napalm Climax sejam referidos por Afonso Cortez num duplo livro acabado de publicar e que pela primeira vez conta a história toda (enfim, quase toda) do punk português, «Corta-e-Cola – Discos e Histórias do Punk em Portugal (1978-1998)».
Duplo porque, virando o livro ao contrário, vem «Punk Comix», de Marcos Farrajota, sobre a presença punk na banda desenhada tuga.
São referidos, mas só de passagem, infelizmente, porque os Napalm Climax nunca chegaram a gravar um disco e o Afonso demora a sua prosa nos álbuns que foram editados. De resto, é aos grafismos das capas que dedica uma boa parte da atenção.
Álbuns só houve quando o Carlos largou o punk para gravar a avant-pop dos Duplex Longa (o CD «Forças Ocultas», 1991, com produção minha) e quando comigo (formando o duo Astronauta Desaparecido) lançou a cassete «Sound & Fury» (também 1991), naquela que foi a primeira manifestação de noise music neste país.
Noise? Noise. Punk elevado ao quadrado, ou seja, já não punk mas radical barulheira, ainda que com ritmo e melodia. E sabem que mais? «Sound & Fury» vai ser brevemente reeditado em CD e no acordo com a editora está a possibilidade de… tocarmos ao vivo.
Agora o meu mano e o meu primo estão de volta ao punk com Presidente Drógado e Sua Banda Suporte, com um CD (2015) a circular da série Burning Sessions. Que é onde está isto.
E participam na coletânea apensa a «Corta-e-Cola / Punk Comix», juntamente com Mandrake, Melanie is Demented, Dr. Frankenstein, dUASsEMIcOLHEIASiNVERTDAS e outros. Ora toma.
Li os dois livros siameses em quatro horas seguidas, tal a gulodice. E porque tinha uma imensa curiosidade sobre a prosa do Afonso Cortez. Afinal, foi ele quem me falou – e no próprio dia em que o conheci – sobre o grupo pop-punk que lançou as melhores canções destes últimos tempos, Vaiapraia e as Rainhas do Baile. Como esta.
Ouvi e fiquei viciado. Desde então já organizei dois concertos do mesmo e partilhei um DJ set com o Rodrigo «Vaiapraia» Araújo. Adoramos ambos a Poly Styrene, o que é mais do que suficiente para uma boa cumplicidade.
O Afonso tinha-me deixado boa impressão e para o encontro levara Candy Diaz, baterista dos saudosos Les Baton Rouges. Yaay! Ela está aqui.
O texto dele é uma catadupa de informação: estão lá Faíscas, Minas & Armadilhas, Crise Total, Ku de Judas, Corrosão Caótica, Mata-Ratos, Estado de Sítio, Anti-Porcos, Kristo Era Gay, Caos Social, Censurados, Bastardos do Cardeal, e muito mais. Oiçam os Crise Total, em anos menos longínquos.
É informação em bruto, não digerida. Só lhe recrimino isso, o não haver mais reflexão sobre os factos. Mas se calhar é mais um problema meu do que dele, pois até os sentimentos intelectualizo.
Quanto à prosa do Marcos, de quem já aqui vos falei, fiquei a perceber que o jeito dele para a narrativa não se fica pelos quadradinhos das suas BDs. Dá gosto seguir-lhe as palavras.
Pronto, agora vou ouvir isto.